DALTON DI FRANCO

DALTON DI FRANCO
Jornalista, escritor, radialista, administrador de empresas, pós-graduado, professor universitário e Advogado. Ele já foi vereador, deputado estadual e vice-prefeito de Porto Velho (RO)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Leia a entrevista de Yvone Barreiros Moreira.

Participaram da entrevista os jornalistas Aline Pinheiro e Maurício Cardoso.

ConJur — Como é hoje o trabalho de um oficial de Justiça?Yvone Barreiros Moreira — O oficial de Justiça é o juiz na rua. Ele tem de localizar as partes e cumprir a determinação judicial. Não seria difícil fazer isso se não houvesse tanta violência e se o profissional fosse mais respeitado. Outro fator de complicação do trabalho é o fato deles sempre levarem más notícias, portanto, são considerados personae non gratae. Ao longo da carreira, para contornar estas dificuldades e não criar conflitos nas diligências, os oficiais vão adquirindo jogo de cintura. Eles têm de ter um lado psicólogo, um lado assistente social e, às vezes, atuar como policial. Claro que nem todos são assim. Ainda existem aqueles que querem impor de maneira grosseira a determinação judicial. Os oficiais precisam ter cursos de técnica de abordagem e de visualizar os tipos humanos.
ConJur — De que forma essas técnicas poderiam ter ajudado no caso da oficial de Justiça recentemente assassinada com nove tiros quando cumpria a determinação de penhorar uma moto em São Paulo?Yvone Barreiros Moreira — O caso da oficial Sandra Regina Ferreira foi uma tragédia. Ela não cumpria uma determinação na área criminal, onde este tipo de técnica pode ser decisivo. O processo era cível, quando, em geral, não se lida com pessoas perigosas. Depois do episódio, soubemos que o réu respondia a inúmeros processos por roubo, extorsão e tráfico de drogas. Se ela soubesse disso, não teria ido sozinha. Hoje, o trabalho de um oficial tornou-se dificílimo. Não pelo ritual da função dele, mas porque não há a colaboração nem dos próprios magistrados em oferecer segurança no trabalho.
ConJur — O oficial de Justiça tem garantias ou prerrogativas previstas em lei para o exercício da função?Yvone Barreiros Moreira — O juiz deve solicitar reforço policial para o cumprimento das diligências. Mas a realidade não é essa. O oficial de Justiça não tem absolutamente nada. Sai com a coragem para enfrentar a violência nas ruas. Além disso, nem sempre informações importantes estão nos autos do processo, como no caso da oficial assassinada. O profissional não sabe com o que vai se deparar. Antes, nós tínhamos acesso à folha de antecedentes do réu. Hoje, não. Quando o profissional sabe que vai para uma área perigosa, como uma favela, uma boca de fumo, pede reforço policial. Nos casos de desocupação também. Às vezes, é necessário um grupo de oficiais para cumprir a determinação, mais os policiais, e mesmo assim a população reage com foices, facões, armas. A conversa com os moradores é importante para amenizar um pouco os ânimos.
ConJur — Quem toma a decisão de pedir reforço é o próprio oficial?Yvone Barreiros Moreira — O próprio oficial. Na maioria dos casos, não há necessidade de se levar um policial. Mas é comum termos surpresas. Houve um caso num processo de família em que o réu era juiz. A oficial não conseguia localizá-lo. Quando descobriu onde era a sua casa, foi até lá e o juiz jogou o carro sobre a oficial. Ela estava em pleno exercício da sua função e depois ainda foi processada pelo juiz.
ConJur — Nesses casos de emergência, como o oficial faz?Yvone Barreiros Moreira — Ele pode chamar a polícia, o que não é fácil. Há três anos, insistimos com o Tribunal de Justiça e a Polícia Militar para a criação de um número de telefone exclusivo para que os oficiais chamem os policiais para acompanhá-los nas diligências ou em situações de perigo. A resposta foi que o 190 está disponível para esse tipo de atendimento. Isso não resolve o problema. Não há necessidade de lei para criar esse contato direto entre a PM e os oficiais. O Tribunal de Justiça tem legitimidade para aprovar uma medida como esta, através de um ato administrativo, cuja implementação dependeria de acordo com a polícia e com a empresa de telefonia, responsável por disponibilizar o número. Já conversamos com o comandante da polícia e com o TJ. Ainda não fomos atendidos, mas não desistimos.
ConJur — Como é a relação entre os oficiais e os policiais?Yvone Barreiros Moreira — A Polícia Civil e também a Militar atendem com muita má vontade os oficiais. Em ações de despejo ou de reintegração de posse, o oficial de Justiça tem de tirar as pessoas de lá. Muitas vezes é ameaçado e não consegue chamar a polícia. Os profissionais mais experientes podem usar algemas, mas quando chegam ao distrito policial não recebem bom tratamento. O delegado questiona a sua atuação. Há ainda a questão da burocracia. Houve um caso em que um oficial teve de pedir ajuda aos PMs e entrou na viatura para irem até o local da diligência. No caminho, o policial disse que não poderia passar de determinada rua, porque não era a sua área de cobertura. O oficial teve de esperar outra viatura, com outros policiais, para cumprir a determinação policial. Parece piada, mas é a nossa realidade.
ConJur — Os oficiais têm carro oficial para trabalhar?Yvone Barreiros Moreira — O salário inicial de um oficial de Justiça em São Paulo é de R$ 3,2 mil, a metade do que ganha um funcionário da Justiça Federal. Eles têm de comprar o carro com o seu dinheiro e usar o próprio telefone para localizar as pessoas. Quem não tem carro, tem que ir de ônibus, metrô. Por lei, as partes são obrigadas a depositar um valor para pagar o combustível ou o transporte, que é insuficiente. Um oficial de Justiça tem de ter um carro 1.4, 1.6, porque pega estrada de terra no interior, por exemplo. Em média, precisam trocar o carro de quatro em quatro anos, porque o uso é intenso. Muitos não ganham o suficiente para pagar o seguro do carro. É comum serem assaltados.
ConJur — Nos casos em que há assistência judiciária gratuita as partes têm de pagar o valor das diligências?Yvone Barreiros Moreira — Não. Com a criação dos Juizados de pequenas causas a situação dos oficiais ficou pior. Eles se tornaram verdadeiros cobradores de pequenas dívidas e trabalham sem receber as diligências. Triplicou o número de concessões de assistência gratuita. Há outro agravante. Em 2007, foi aprovada a Lei 11.608 que reduziu de 20% para 10% o valor das custas judiciais que eram destinadas a indenizar os gastos com as diligências. O tribunal cortou 50% do valor do reembolso dos oficiais. Para trabalhar, eles gastam antes de receber o salário. Quando o oficial vai fazer a busca e apreensão de máquinas gigantes de uma indústria, por exemplo, ele tem de providenciar o caminhão para a retirada dos equipamentos.
ConJur — Quanto recebem por diligencia?Yvone Barreiros Moreira — Na área cível, cada diligência custa R$ 15. Se o processo tiver muitas partes, muitos endereços para localizar, o advogado deposita mais. No entanto, não é 100% desse valor que vai para o oficial. Um juiz auxiliar da Corregedoria do TJ emitiu parecer definindo que não importa quantas diligências os oficiais têm de cumprir durante o mês, cada um receberá uma cota. Isso quer dizer que se o oficial andou 100 quilômetros vai receber o mesmo valor que aquele que percorreu 500 quilômetros. No caso de Tribunal do Júri, que os profissionais têm de localizar os 24 jurados, o valor é o mesmo. Há uma representação no Conselho Nacional de Justiça contra essa prática. Calculamos que o tribunal tenha retido cerca de R$ 54 milhões.
ConJur — Muitas pessoas costumam se esconder dos oficiais de Justiça. Qual a técnica para encontrar pessoas?Yvone Barreiros Moreira — O oficial tem de ser hábil. Ele só consegue aprender com a prática ao longo da carreira, porque não tem treinamento específico. Com a minha experiência, aprendi que não se pode informar sobre a penhora do apartamento da família quando marido e mulher estiverem em casa, porque pode desencadear um imenso conflito familiar. É comum a penhora ser determinada por conta da outra mulher que o marido mantém. E quando o oficial volta e encontra a mulher sozinha tem de ter jogo de cintura, porque, nos casos de execução de penhora, os dois têm de assinar a citação. Se o profissional não tiver jeito para dizer, dificilmente a mulher assina. Outro momento difícil é o de busca e apreensão de menores, tirar a o filho do pai e da mãe. Quando o oficial chega, a mãe vira uma leoa. Se o oficial for prepotente ou não tiver habilidade, a determinação não será cumprida. Os homens, geralmente, têm cabeça mais fria.
ConJur — Quantos são os oficiais de Justiça no estado de São Paulo?Yvone Barreiros Moreira — Nove mil oficiais seriam necessários para dar conta de toda a demanda do Judiciário paulista. Mas temos um déficit de 4.024 oficiais. Ao todo, entre oficiais na ativa, aposentados e licenciados, temos sete mil profissionais. Essa diferença entre o déficit e o número de oficiais está no fato de que o Tribunal de Justiça mantém um convênio com as prefeituras para nomear funcionários do Executivo para fazer o serviço de oficiais ad hoc, uma expressão latina, que quer dizer “para o ato”. Muitos deles ficam cinco, 10, 15 anos atuando como oficiais, sem concurso público. É um abuso. Eles recebem R$ 600, o que dá ensejo a cobrança de propina e outras formas de corrupção. Contra isso entramos com uma representação na Corregedoria do tribunal. Somos contra a nomeação de pessoas despreparadas para desempenhar a função de oficial de Justiça. Conversamos com o presidente do TJ, Vallim Bellocchi, e ele disse que não há verba para regularizar a situação, que o Executivo cortou o orçamento do Judiciário.
ConJur — Não há previsão para contratação de oficiais?Yvone Barreiros Moreira — O Tribunal de Justiça anunciou que em breve haverá um concurso para oficial de Justiça. Ainda não sabemos quantas vagas serão abertas, mas teremos cerca de 200 mil inscritos. No último concurso, que foi em 1999, tivemos 146 mil candidatos. Para sairmos do sufoco, precisamos de mais dois mil oficiais. O volume de processos aumenta a cada dia.
ConJur — É necessário ser bacharel em Direito para ser oficial?Yvone Barreiros Moreira — Em São Paulo, não é, mas a maior parte dos oficiais do estado são bacharéis. Há 15 anos lutamos para que haja essa exigência. Estamos em plena campanha para isso. Somos contra a nomeação de pessoas desqualificadas para a função. Além disso, a Resolução 48/07, do Conselho Nacional de Justiça, exige nível superior para a carreira.
ConJur — Como é a distribuição dos oficiais pelas comarcas do estado? Cada vara tem quantos oficiais?Yvone Barreiros Moreira — O estado de São Paulo tem mais de 200 comarcas e quase 100 foros distritais e regionais. Os oficiais de Justiça estão em todos os 645 municípios do estado. Na capital, o ideal seriam oito oficiais por vara, em média. Na prática, temos locais em que só há três oficiais e, no interior, oficiais que trabalham com vários juízes. Há comarcas pequenas, com 10 mil processos, com apenas quatro oficiais para cumprir mandados em todas as áreas (criminal, cível, família). O Judiciário ainda não fez um levantamento para saber quantos oficiais, escreventes, auxiliares e diretores são necessários em cada comarca.
ConJur — Há fiscalização do trabalho dos oficiais?Yvone Barreiros Moreira — O oficial de Justiça é subordinado ao juiz, mas no dia-a-dia quem coordena o trabalho é o diretor do cartório. É a ele que o juiz delega poderes de fiscalização. Nós entendemos que esse não é o melhor modelo. A associação já fez a proposta de criação da figura do oficial coordenador, porque muitos diretores não gostam dos oficiais e estes não aceitam ser coordenados por eles. Para nós, quem pode fiscalizar o trabalho do oficial é aquele que já exerceu a função. Muitas varas trabalham dessa forma. No Fórum das Varas da Fazenda, em São Paulo, a juíza diretora permitiu que os próprios oficiais se organizassem e se fiscalizassem entre si. A experiência está sendo muito boa. Há ainda uma proposta de criação de uma Central de Mandados. Se bem estruturada, essa ideia pode facilitar o trabalho dentro do Judiciário.
ConJur — Como funcionaria a central de mandados?Yvone Barreiros Moreira — A ideia é mapear as regiões e distribuí-las entre os oficiais. Cada um ficará responsável por algumas ruas. No Rio de Janeiro e em Porto Alegre a experiência foi bem sucedida. A diferença, entretanto, é o tamanho dessas cidades. São Paulo é muito grande. A organização e a distribuição do trabalho entre os oficiais seriam bem mais complicadas. A nossa sugestão é que os oficiais possam se fiscalizar entre si. Eles são conscientes da seriedade do seu trabalho. Claro que há oficiais mal intencionados, mas isso existe em todas as carreiras, inclusive na magistratura.
ConJur — Há um código de ética do oficial?Yvone Barreiros Moreira — Estamos tentando a aprovação de uma Lei Orgânica para a profissão, o que será a solução para os problemas enfrentados. O projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados. Há também um projeto de lei no Senado que prevê porte de arma para os oficiais. Como cidadã, sou contra o porte de arma, mas como presidente da associação não posso negar que muitos colegas precisam disso para trabalhar. Em Mato Grosso e no Pará, por exemplo, os oficiais precisam de arma para trabalhar. A situação é complicada. O senador Paulo Paim (PT-RS) está patrocinando essa causa.
ConJur — Qual o histórico de violência contra oficiais?Yvone Barreiros Moreira — Desde 1998, 15 colegas foram mortos. Antes da Sandra Regina, um oficial também foi morto a tiros durante o trabalho no Rio Grande do Sul. Além das agressões físicas, há as agressões verbais. Há ainda muitos casos de oficiais que desistem da carreira. Na 7ª Vara da Fazenda, onde eu era lotada, uma nissei tinha de cumprir alguns mandados para penhora de bens em boates. O cumprimento do mandado tinha de ser à noite, depois da meia noite, para que o dono da casa fosse encontrado. Ela disse: “não vou, porque se meu pai descobrir que eu entrei em uma boate, me expulsa de casa”. Eu cumpri os mandados para ela. Mas ela desistiu da profissão. Foi trabalhar na área administrativa da Justiça Federal.
ConJur — Nos outros estados, a situação dos oficiais de Justiça é muito diferente da de São Paulo?Yvone Barreiros Moreira — Há grandes diferenças. O estado de Roraima, por exemplo, é muito próximo da Venezuela e o contrabando de combustível é muito grande. Índios escondem a gasolina. É difícil o trabalho do oficial de convencer o índio de que ele não pode ficar com aquele produto. É muito perigoso, porque os problemas se resolvem na base do gatilho. Ainda bem que os oficiais têm apoio da Polícia Federal. Aqui em Cananéia, apesar de ser em São Paulo, a situação também é muito peculiar. Os oficiais têm de usar barco do Ibama para cumprir os mandados. Para localizar os palmiteiros que trabalham fortemente armados em meio à Mata Atlântica, é comum acampar e dormir no meio da mata.

Fonte: Consultor Jurídico

Nenhum comentário: