DALTON DI FRANCO

DALTON DI FRANCO
Jornalista, escritor, radialista, administrador de empresas, pós-graduado, professor universitário e Advogado. Ele já foi vereador, deputado estadual e vice-prefeito de Porto Velho (RO)

quinta-feira, 3 de março de 2011

JULGAMENTO DEVE REFLETIR ISONOMIA ENTRE CARREIRAS



por Ali Mazloum

Amargo conflito sobre a posição do assento reservado ao Ministério Público foi desencadeado na República Federal da Alemanha, logo após a queda do nazismo. Antes, grudado aos juízes por ocupar o mesmo banco, foi o acusador colocado no piso, em situação de idêntico prestígio destinado ao advogado de defesa.

Chamem o carpinteiro! Foi o que se fez na República da Polônia, depois da reforma de Gomulka (1956), para apagar os resquícios do totalitarismo que por ali começava a soçobrar. Mandaram, literalmente, chamar o carpinteiro para cerrar a bancada que unia o acusador ao juiz. Essa medida extrema, simbólica, arrolhava uma das piores e mais assombrosas heranças soviéticas no sistema judiciário polaco: a proeminência do Estado-acusação .

O passado inglório, certamente, revelara àquelas nações a importância da distribuição isonômica da palavra e também dos lugares e posições reservados a cada partícipe do processo penal. Em sala de audiências ou na sessão de julgamentos nos tribunais, a paridade de armas entre acusação e defesa constitui elemento imprescindível para a obtenção de um resultado justo. Aquelas mudanças, portanto, não tiveram cunho meramente decorativo. Estão pautadas no mais lídimo desejo de realização de justiça.

Por aqui, a despeito dos inúmeros problemas ainda sem solução, especialmente o relativo à morosidade do Judiciário, o objeto de desejo dos atores do processo continua sendo o estrado, ou tribunal como era designado o lugar reservado aos magistrados para distribuir justiça. Com todos preocupados em subir ao palco, o espaço ficou pequeno para tanta gente.

Para se ter uma idéia da encrenca causada pela má interpretação de leis corporativistas, na Justiça Federal os magistrados têm assento sobre um pequeno estrado; o membro do Ministério Público Federal (MPF) tem o privilégio de sentar-se no mesmo plano e à direita dos juízes; à Defensoria Pública da União (DPU) é dado o direito de sentar no mesmo plano do MPF; a Advocacia (OAB) tem direito a receber tratamento isonômico. Concluindo: cercado lotado, sala vazia, e muito pouco caso com o escalonamento normativo, pelo qual a Constituição deveria ocupar a hierarquia do sistema. É dela que se deveria extrair a concepção cênica de uma sala de audiências.

É clarividente que a equidistância do julgador não se mede pela altura do piso onde se assenta, mas pelo tratamento dispensado a cada uma das partes. Daí merecerem os participantes do cenário processual condições jurídicas igualitárias de argumentação e de atuação. No processo penal, acusação e defesa, como em qualquer espaço democrático, devem estar em pé de igualdade. Enfim, sobriedade e neutralidade devem adjetivar uma sala de audiências. Pompa, compadrio e parcialidade judicial não combinam com ambientes forenses.

Tentativa de solução à maçaroca foi ensaiada na 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo após justa reclamação de defensores públicos. Com a determinação de retirada do estrado sobre o qual ficava a mesa destinada aos trabalhos do juiz, todos foram parar no piso térreo da sala. Mais ainda: o assento da acusação foi colocado ao lado do assento da defesa, dando-se efetividade ao princípio constitucional de paridade de armas entre ambos. Todavia, o MPF insiste em sentar-se ao lado do juiz. Não quer concorrência com o advogado. Para tanto, impetrou Mandado de Segurança um tanto sui generis no Tribunal Regional Federal da Terceira Região, servível para defender não um direito, mas uma “tradição”. Que tradição seria essa de sentar a acusação ao lado do julgador?

Durante a ditadura militar instaurada a partir do golpe de 1964, o assento do acusador nas sessões de julgamento galgou o estrado e aferrou-se à mesa de trabalho do juiz, não por motivos legais, nobres ou de justiça, mas como lembrete da onividência castrense sobre a atividade judiciária. O MPF, na época, agia como uma espécie de longa manus do regime. Torçamos para que não seja essa a “tradição” defendida em remédio tão heróico e democrático como é o mandado de segurança.

Não sendo essa a tradição reivindicada pelo MPF, existe outra, de natureza religiosa, decorrente das diversas passagens do Novo Testamento, que mostram que o centro de tudo é Deus (ou o Pai como Jesus o chamava) e é o lugar daquele que detém a autoridade máxima, seguido do lugar à sua direita, reservado a Jesus Cristo. O evangelista Marcos, narrando a ascensão de Jesus Cristo, assevera, “depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16,19). A primazia do lugar central e o da sua direita, retratados na Bíblia, no decorrer dos tempos, foi sendo assimilada pelas autoridades laicas, em especial durante a idade média, por causa da ascendência que os Papas tinham sobre os soberanos cristãos do ocidente. Ora, nem o Judiciário é Deus, nem o MPF deveria ter a pretensão de ser filho da divindade. Ademais, acovilhar tradição religiosa em Estado laico para garantir um lugar ao lado do juiz constitui afronta direta à Constituição Federal.

Em verdade, não existe tradição nenhuma que assegure ao Estado-acusação assento privilegiado. Não lhe é dado sentar-se ao lado do julgador. Não se encontram motivos na atual Constituição Federal que justifiquem esse tipo de comunhão. O Poder Judiciário, em obediência ao princípio constitucional de acesso à Justiça, deve receber as partes em seu recinto de trabalho e a elas dispensar tratamento isonômico, sem prestigiar uma em detrimento de outra.

O processo penal moderno prima pela busca da verdade real. Foi idealizada para o processamento de inocentes, não de culpados, porquanto a culpa é extraída somente a final, com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Em audiência, onde são produzidas importantes provas, especialmente a oral, deve-se garantir que o comportamento de depoentes (réus, testemunhas, informantes) não seja influenciado pela composição cênica de uma sala de audiências de estilo nazi-fascista, destoante de preceitos constitucionais indisputáveis, como o é a isonomia entre a acusação e defesa, e a equidistância material e formal do juiz.

É imperiosa a efetivação da isonomia entre todos os integrantes de carreiras essenciais à Justiça, fazendo-se do desapego um exercício constante para pôr cobro a privilégios injustificáveis. É preciso, pois, criar o ambiente ideal nas salas de julgamento para que haja interação entre inquiridos e inquiridores. É preciso estatuir iguais condições entre acusação e defesa para se estabelecer com depoentes e ouvintes o que os franceses denominam de rapport, que em suma significa concordância, relação, afinidade. A boa comunicação interpessoal pode ser decisiva na obtenção de informações seguras e úteis ao resultado justo do processo. A capacidade de persuasão está diretamente ligada à forma como esse processo de comunicação se desenvolve. Destarte, que se dê lugar à justiça. Cumpra-se a Constituição, que não outorga privilégios nem locais de destaque a quem quer que seja. Que se faça da justiça o foco principal do processo judicial.

Ali Mazloum é juiz federal em São Paulo, especialista em Direito Penal e professor de Direito Constitucional.

Fonte: CONJUR (em 28/02/2011)

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